Idílio
Idílio é umas das múltiplas chaves de leitura da vasta obra de Clarice Gonçalves. Há mais de duas décadas, a artista brasiliense desenvolve uma consistente produção de pintura, linguagem na qual materializa mundos oníricos habitados por mulheres, mães, crianças e criaturas enigmáticas. A convivência entre essas personagens nem sempre é pacífica. Por vezes, revela-se dúbia, sobretudo, quando exibe figuras agônicas em recintos privados, cujos espaçamentos podem ser interpretados como uma metáfora da retenção do desejo íntimo feminino. O conjunto exposto igualmente recorre a uma mirada ecológica radical, ao representar uma comunhão orgânica entre figuras femininas e a natureza. Os antigos espaços de clausura cedem lugar a amplas paisagens terrosas, onde os corpos se integram harmonicamente com o ecossistema. Nesses mundos possíveis, convivem a cultura e a natureza em uma fusão permanente, por meio do culto à dimensão telúrica da vida. A simbiose entre o corpo da mulher e o meio ambiente, presente em Idílio, reativa os saberes oriundos do ecofeminismo, corrente que correlaciona a degradação ecológica ao complexo sistema de opressões que recai sobre o gênero feminino: ambas são consideradas fontes de recursos inesgotáveis para a acumulação de capital. A tradução imagética desse movimento cria uma ponte entre a ecologia e o feminismo, em que a artista congrega o corpo humano ao corpo animal. Essa fusão gera organismos vivos que garantem o bem comum, em contraponto à mercantilização do meio ambiente e do corpo feminino. As silhuetas de Ana Mendieta também são o horizonte de reflexão de Clarice, ao evocar o poder disruptivo dos contornos naturais da cubana e conectá-los às práticas ecofeministas. A ênfase na conexão total entre o corpo, a natureza e o animal produz modos de vida que não podem ser domesticados, tampouco neutralizados por um ideal de progresso que corrobora para a manutenção de desigualdades.
Luiza Mader Paladino